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Gênese, Fim e Futuro da Ufologia

Embora a febre por discos voadores que se iniciou em 1947 nos EUA seja definida por muitos como o “início da ufologia moderna” e tenha sido um fenômeno social e de mídia, e portanto civil, o estudo sistemático de OVNIs foi uma criação militar em resposta a tal febre. Um simples fato ilustra o ponto aqui de forma clara: o próprio termo Unidentified Flying Object e seu acrônimo UFO foram criados por militares.

A autoria e a data de criação exatas do acrônimo UFO são um tanto incertas, uma vez que diversos termos foram cunhados por militares nos primeiros anos de análise do tema, mas o capitão Edward Ruppelt, chefe do projeto Blue Book, afirma que estabeleceu oficialmente o famoso acrônimo, e deve tê-lo feito pouco depois de 1950. [1]

Que a ufologia tenha sido criada por militares ajuda muito a entender uma incongruência central e, em retrospecto, intrigante: um estudo que se centra primariamente em coletar, analisar e investigar relatos de pessoas não deveria ser um primariamente sociológico, com a ajuda de avaliações psicológicas? Não que se assuma que os relatos sejam derivados de acessos de insanidade, mas em meio a uma febre popular com relatos abundantes e pouca ou nenhuma evidência física, deveria estar claro que sociólogos, psicólogos e afins deveriam ser requisitados antes de físicos ou astrônomos.

Esta abordagem filtraria primeiro os relatos e só repassaria aos cientistas físicos evidências que estes estivessem mais capacitados a analisar, sem que precisem se aventurar indevidamente a falar de gases do pântano e outras explicações mirabolantes para explicar relatos sem qualquer evidência física corroboradora. [2]

Militares entretanto pouco devem se importar com fenômenos sociológicos, pelo menos de início. Na aurora da conquista espacial e em plena Guerra Fria era mais importante avaliar antes o quê eram os OVNIs e quais seus perigos do que investigar a grande febre sociológica que ocorria. Assumiu-se que a febre era causada por OVNIs reais [3], e esta é a atitude esperada de militares encarregados da “segurança nacional”.

Quando um militar vê um OVNI, a primeira questão que lhe deve vir à mente é se ele vai atacar ou não.
Os grupos civis de pesquisa de OVNIs surgiram no rastro das primeiras pesquisas militares. Embora tenham todos se originado de uma insatisfação com os resultados divulgados das investigações militares, e portanto se esperasse que tomassem abordagens completamente diferentes, este não foi o caso. Suas abordagens foram sim diferentes, mas preservaram a incongruência central: assumiu-se que o fenômeno popular em torno de discos voadores era causado por OVNIs reais.

É importante notar que não se está aqui dizendo que OVNIs reais não existam. O que se está atentando é que, sem evidências suficientes, assumiu-se que OVNIs reais existiam e eram a causa da febre popular que ocorria. Hoje está muito claro que boa parte da febre popular em torno do tema não foi e não é causada por OVNIs reais, mas por um fenômeno sociológico.

Podem-se criar “ondas de OVNIs” (UFO flaps) simplesmente através da divulgação de relatos fraudulentos que sejam amplamente divulgados pela mídia. [4]

O Fim da Ufologia
Há pouco mais de dez anos, com a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, o filósofo e historiador Francis Fukuyama apresentou a tese polêmica de que a História havia acabado. O sistema democrático-liberal triunfante mostrava-se incontestável e sem rivais viáveis no mundo, aparentando ser o ponto final da ancestral busca da humanidade por um sistema de organização aceitável, ao qual todos agora só precisavam almejar. Em um plano menor a história continuaria dando suas inevitáveis reviravoltas, mas a História havia acabado.

Independentemente de concordarmos ou não com a tese de Fukuyama – e ele mesmo parece tê-la revisado recentemente – ela serve para ajudar a entender uma outra tese: a de que a Ufologia acabou. Nunca devemos nos esquecer de que a Ufologia é e sempre será o estudo científico específico de OVNIs, definidos como objetos voadores que não foram identificados e portanto não podem ser pré-definidos.

Para o crítico, a Ufologia falhou em sua promessa implícita de acumular conhecimento científico sólido sobre eles a despeito de meio século de existência e um número estimado de avistamentos ultrapassando a casa das centenas de milhares.

Mais importante, e talvez uma explicação ao fracasso, ela nunca chegou a estabelecer uma metodologia científica definida e promissora para o escrutínio do tema ao longo de todo este tempo. Os métodos de investigação de OVNIs são hoje tão primitivos e dependentes do acaso quanto eram no começo dos anos 50. A Ufologia acabou porque nunca se estabeleceu como ciência.

Já para aqueles que “acreditam” na Ufologia, pode ser difícil reconhecer que ela acabou, mas diversas atitudes indicam de forma prática ao fim. [5] Aos “ufólogos científicos” que acreditam que está mais do que comprovado que OVNIs são naves alienígenas, a Ufologia acabou assim como a História de Fukuyama teria acabado – afinal, se OVNIs são naves alienígenas, então aqueles que os estudam esgotaram a pergunta primordial da área. Podem passar seu tempo classificando as raças de aliens, suas intenções e tantos outros aspectos para tentar “conscientizar” a população dessas “verdades”, mas o que não estarão fazendo é estudar OVNIs com a dúvida científica pressuposta na Ufologia sobre o que OVNIs reais poderiam vir a ser.

Finalmente, aos “ufólogos místicos” a ufologia nunca foi sobre OVNIs.

De uma forma ou de outra, são poucos os que ainda hoje se limitam a pesquisar OVNIs apenas – o que já é inclusive definido pejorativamente como “ir atrás de luzinhas no céu”. Ufólogos passaram com o tempo a englobar em seus estudos toda uma série de supostos “fenômenos”, de abduzidos a chupacabras, passando por mutilações de animais e mesmo por contatados. [6]

Por diversos processos e abordagens, ao longo de cinco décadas a Ufologia definida como uma abordagem protocientífica centrada única e diretamente na análise e compreensão de objetos voadores não-identificados simplesmente acabou. [7]

Podemos nos arriscar estabelecer, de forma um tanto arbitrária, mas talvez útil aos futuros pesquisadores, que o fim definitivo da Ufologia ocorreu com o fim do século XX. Embora poucos ufólogos tenham realmente acreditado que discos voadores iriam pousar na Casa Branca em 2000 ou 2001, muitos não hesitaram em implicar que grandes novidades surgiriam até o fim do milênio. [8] Novidades podem ter surgido, mas dificilmente foram grandes, revolucionárias.

O que se acumulou ao longo dos anos, e pode ter ultrapassado um limite crítico com a virada do milênio, é o que podemos chamar de “ônus da frustração”. O peso do ônus da frustração é atualmente gigantesco.

Talvez o fim da Ufologia possa ser um indicativo da falha essencial exposta e explicada na primeira parte deste texto: a ufologia foi criada por militares centrada diretamente em uma preocupação com OVNIs reais, deixando a análise de relatos a cargo de cientistas físicos quando deveria ter se iniciado como o estudo de uma febre sociológica que apenas possivelmente envolvia OVNIs reais motivando relatos.

A Ufologia criada pelos militares e propagada por civis terminou. E seu fim, ao contrário do suposto fim da História, é melancólico: meio século de estudo não acumulou conhecimento científico sólido sobre o tão estimado e ainda hipotético objeto de estudo, os OVNIs reais. Esta frustração transformou-se em um ônus, que para alguns indica a irrelevância do tema, e para outros indica que a Ufologia deve englobar tudo que seja mais interessante que “luzinhas no céu”.

O Futuro
O que vemos hoje é uma “ufologia” que se igualou a uma versão pseudocientífica da astrobiologia, sem se preocupar com OVNIs, mas com alienígenas. Esta pseudociência nunca deverá acabar, e seu futuro só depende da habilidade de seus promotores de cativar o interesse natural que todos temos pelo desconhecido e pelo enigma da imensidão do espaço aparentemente vazio que vemos todas as noites.

Isto pode ser feito de forma pedante e oportunista, com a venda sensacionalista de mitos e desinformação deliberada. Mas também pode ser feito de forma criativa, com histórias emocionalmente tocantes ou que pelo menos entretenham sem maiores danos.
Iniciativas céticas que estudam relatos de OVNIs, e não diretamente OVNIs reais, têm por sua vez um grande caminho pela frente. Trabalhos como os de Martin Kottmeyer, indicando de forma clara os aspectos culturais de relatos de abdução e mesmo dos relatos de OVNIs, [9].

São uma demonstração do potencial desta abordagem de fazer com que a Ufologia, se não vai revelar muito sobre os OVNIs, revele muito sobre nós mesmos, que relatamos OVNIs.
Afinal, esta abordagem é justamente a que deveria ter sido tomada desde o começo, filtrando relatos pelo seu valor social e cultural para que eventuais evidências físicas relevantes possam ser analisadas em seu devido contexto.

Isto dá a deixa para notar que mesmo o fim da Ufologia, centrada no estudo de OVNIs apenas, não é definitivo. O que procurei atentar neste texto é que a Ufologia começou pressupondo uma invasão de “algo” que estava causando um quase-pânico e precisava ser assim identificado. Não se imaginou que o pânico poderia ser mais um fenômeno social do que a resposta a uma invasão, fosse ela comunista ou alienígena.

A abordagem nascida desta falha foi definida como “a” Ufologia, mas estava essencialmente errada, sem levar a lugar algum a despeito de muitas tentativas sérias e bem-intencionadas.
Isso pode mudar. Poderemos nos ver em uma situação onde relatos de OVNIs são provocados mais por um contato com algo desconhecido do que como resultado de processos culturais. E já que estamos falando do futuro, um evento que já começou pode provocar esta mudança: o turismo espacial.

Relatos sobre astronautas e OVNIs, embora sejam em grande parte distorções e por vezes mentiras deliberadas para a venda de sensacionalismo, [10] têm em alguns casos fundamentos. Um número considerável de astronautas voltou à Terra relatando contatos inusitados e outros fenômenos estranhos.

O advento do turismo espacial, que deve levar nas próximas décadas milhares de pessoas à órbita, e em mais algum tempo para além, deve gerar uma nova onda de relatos sobre OVNIs, que podem vir a ser provocados por fenômenos físicos desconhecidos e reais. Aliando isto à ampla disseminação de instrumentos de registro e comunicação, o futuro pode reservar muito.

Só esperemos que se apesar dessas expectativas, outra vez relatos de OVNIs no espaço abundarem e evidências físicas forem escassas, não cometamos o erro de tentar reviver a Ufologia criada por militares há mais de meio século.

Agradecimentos
Agradeço aos comentários e sugestões de Fernando Walter, do CETESbr, e de Fernando Caldas e Rodolpho Gauthier, da OPUs. Todas as partes louváveis deste texto devem muito a eles, enquanto todas as falhas são certamente minhas, incluindo a falta de originalidade deste agradecimento.

Notas
[1] Ruppelt escreve: “UFO é o termo oficial que criei para substituir as palavras ‘discos voadores'” (Report on Unidentified Flying Objects, disponível em http://www.nicap.dabsol.co.uk/one.htm )
[2] Relatos por si só não têm valor suficiente para estabelecer a realidade de um fenômeno físico desconhecido. Relatos de “testemunhas confiáveis” ou de múltiplas testemunhas são um elemento importante, mas na ufologia sua única utilidade prática deveria ser a de levar à descoberta de evidências físicas corroboradoras.
[3] OVNIs são simplesmente objetos não-identificados. Através de investigação, pode-se estabelecer que um OVNI era de fato um OVI, ou seja, que o OVNI era em verdade irreal. Contudo, podemos imaginar que alguns OVNIs sejam derivados de fenômenos desconhecidos, incluindo mesmo, mas não limitados a, naves extraterrestres. Tais OVNIs podem ser definidos como OVNIs reais (uma variante de “OVNIs autênticos”, termo evitado por dar a entender que existam OVNIs falsos, o que só seria um termo apropriado no caso de fraudes deliberadas).

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Luís Aparício

Luís Aparício

Chefe de redacção, fundador e activista.